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quarta-feira, 7 de abril de 2010

CONTOS RUIVOS

    Resolvemos postar o  texto da escritora, Clarice Lispector, enviado pela nossa leitora, Ana Galeano, e abrir a série: Contos Ruivos, desperte o escritor(a) que existe em você. Mande um conto ruivo feito por você ou por algum escritor conhecido. O nosso blog esta aberto para novos talentos.  O nosso e-mail é osruivos@uol.com.br. Quem sabe não fazemos um livro só de contos sobre Ruivos. Só depende de você. Para incentivo de nossos colegas ruivos, na próxima edição, Pedro e eu faremos um conto ruivo para os visitantes do blog.

                                             Clarice Lispector




                                                     TENTAÇÃO

Clarice Lispector


      Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era ruiva. Na rua vazia as pedras vibravam de calor, a cabeça da menina flamejava. Sentada nos degraus de sua casa, ela suportava. Ninguém na rua, só uma pessoa esperando inutilmente no ponto de bonde. E como se não bastasse seu olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia de momento a momento, abalando o queixo que se apoiava conformado na mão. Que fazer de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento contra desalento. Na sua deserta nenhum sinal de bonde. Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária. Que importava se num dia futuro sua marca ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher? Por enquanto ela estava sentada num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que a salvava era uma bolsa vermelha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um amor conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos.

     Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em Grajaú. A possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina, acompanhando uma senhora, e encarnada na figura de um cão. Era um ‘basset’ lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um ‘basset’ ruivo.

     Lá vinha ele trotando, à frente de sua dona, arrastando seu comprimento. Desprevenido, acostumado, cachorro.A menina abriu os olhos pasmados. Suavemente avisado, o cachorro estancou diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam.

      Entre tantos seres que estão prontos pra se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele fremia suavemente, sem latir. Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada, séria. Quanto tempo se passava? Um grande soluço sacudiu-a desafinado. Ele nem sequer tremeu. Também ela passou por cima do soluço e continuou a fitá-lo.


    Os pelos de ambos eram curtos, vermelhos.Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se, com urgência, com encabulamento, surpreendidos.

        No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução para a criança vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores, de tantos esgotos secos – lá estava uma menina, como se for a carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes de Grajaú. Mais um instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se pediam.

 
    Mas ambos eram comprometidos.Ela com sua infância impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ela fosse uma mulher. Ele, com sua natureza aprisionada.A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O ‘basset’ afinal despregou-se da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa nudez que nem pai nem mãe compreenderiam. Acompanhou-o com os olhos pretos que mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-lo dobrar a outra esquina.Mas ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás.